Tuesday, November 28, 2006

VERDADES INCONVENIENTES NASCEM DE PERGUNTAS INCONVENIENTES

A ABES, Associação Brasileria de Empresas de Software, divulgou recentemente uma pesquisa que está sendo utilizada pelos seus membros e pela Microsoft para atacar o software livre no programa Computador para Todos.
O programa PC Conectado, hoje, Computador para Todos, foi um sucesso e ampliou a base instalada de software livre no Brasil. Isto fez com que a microsoft começasse a baixar os preços de suas licenças e tentar de todas as formas impedir que as máquinas saissem de fábrica com 26 softwares livres instalados. A concorrência promovida pelo software livre teve como efeito imediato a redução do preço das licenças de software proprietário, para o desgosto do monopólio.
Para tentar conter o avanço do software livre, uma das estratégias do monopólio é pagar todos os anúncios publicitários das empresas de hardware. Por isso, lemos propaganda de computadores nas páginas de jornal com o seguinte texto: empresa tal recomenda M$. Obviamente se fizermos o balanço contábil do que a empresa de hardware paga para a microsoft e retirarmos o que a microsoft paga em anúncios e promoções podemos perceber que ela está quase dando suas licenças gratuitamente. Mas isto não é uma prática anti-concorrencial? Sim.O CADE irá agir?

Agora, a microsoft coloca uma propaganda na TV que dá a impressão que o software livre é um software pirata ou ruim, sendo que o software instável e repleto de vírus é o deles. Isto não seria uma propaganda enganosa? E o CONAR ( Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária ) fará algo?

Por fim, algumas perguntas sobre a pesquisa da ABES precisam ser feitas:

1) Por que uma pesquisa feita em junho foi divulgada somente agora? Será que é para impedir as vendas de computadores com software livre na véspera do Natal? Será que é para influenciar na montagem do novo governo Lula?

2) Por que a pesquisa não peguntou quantas máquinas com start edition, da microsoft, foram trocados por windows pirata?

3) Por que a pesquisa da ABES não quis saber quantos computadores vendidos somente com windows serve para a instalação de todos os demais softwares piratas? Ou será que a ABES não sabe que soemnte a licença para o Office (pacote de escritório da m$) custa R$ 1200,00 (mais que o computador)?

4) Por que a pesquisa foi feita somente em dois estados ou segundo está escrito "nas Unidades Federais de São Paulo e Paraná?

5) Por que a ABES não faz uma pesquisa para saber qual o grau da pirataria geral no país? Será que é porque ela descobrirá uma verdade inconveniente: a pirataria é que mantém o monopólio da microsoft. Quantas pessoas que compram computadores que custam R$ 1800,00 gastariam mais R$ 1400,00 somente nos demais aplicativos da m$, sem falar no Corel, no Photoshop, entre outras licenças.

Acho que a tentativa de manter o monopólio tem limites. A concorrência é melhor, reduz custos, melhora a qualidade e, por isso, devemos defendê-la. Não seria o caso, do CADE, do Ministério Púbico Federal e outros órgãos de defesa da concorrência entrarem em ação?

Wednesday, November 15, 2006

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO OU DA VIGILÂNCIA?

Publiquei este artigo na minha coluna no Gazeta Mercantil, dia 11 de novembro, segunda-feira. Trata da defesa do anonimato e da privacidade na rede:


Você acharia correto a aprovação de uma lei que obrigasse as pessoas andarem nas ruas com seus nomes expostos de modo visível em um adesivo sobre a roupa? Seria uma medida razoável prender e impor uma pena de dois anos de detenção para as pessoas que usassem nomes não verdadeiros ao caminharem pelo passeio público? Estas medidas impediriam que os criminosos agissem contra os homens de bem? Os bandidos ficariam intimidados em terem que assaltar lojas e transeuntes com seus nomes expostos? As ruas seriam mais seguras? Tudo indica que não.

Agora imagine se além do nome você tivesse que expor seu número de telefone e CPF. Alguns poderiam perguntar se existe algum mal nesta identificação. Afinal, por que os cidadãos honestos seriam penalizados pela exposição da verdade? O que eles teriam para esconder? Os mais extremistas diriam “quem não deve, não teme”.

Ainda bem que estamos longe disso. Uma lei desse tipo que obrigasse a identificação permanente além de não evitar os crimes, apenas penalizaria os cidadãos pacatos. Permitiria que agentes mal intencionados mapeassem as pessoas e ligassem nomes e dados a comportamentos e ações. Esta sociedade seria insuportável. Seria uma sociedade da vigilância e da destruição da privacidade. Uma sociedade que reduziria a liberdade e introduziria o cotidiano de eterna ameaça. Dito dessa forma parece que estou construindo um cenário de ficção futurista, mas infelizmente alguns lobistas de empresas de segurança digital e pessoas de mentalidade autoritária estão querendo impor o fim do anonimato em nosso cotidiano. Alguns projetos de Lei já rondam o Congresso Nacional, em Brasília.

Estes projetos representam os grupos que querem acabar com a privacidade na Internet. São pessoas que consideram o anonimato é incompatível com a segurança na rede. Sem dúvida, no ciberespaço existe um trade-off entre a segurança e a defesa da privacidade. O importante é encontrar um equilíbrio entre uma coisa e outra. Seja como for é essencial defender a liberdade. Não pode existir liberdade em uma sociedade assimétrica sem existir a privacidade. Portanto, é inaceitável que as pessoas sejam obrigadas a se identificar e inserir seu RG, CPF e telefone para poder acessar um chat ou entrar em um ambiente interativo. De certo modo, isso pode ser muito pior do que ter que andar com seu nome exposto pelas ruas, pois nelas você poderia ainda tentar perceber quem está lhe vigiando. No interior das redes digitais, os cidadãos comuns não têm a mínima chance de saber quem estará escaneando e vigiando seus rastros digitais. Mas, os crackers terão à sua disposição mais facilmente o nome real e o CPF de suas vítimas, além de seus usernames e senhas. Um absurdo.

Ao contrário do que pretendem os formuladores desses ataques contra a liberdade, o anonimato é vital em uma sociedade. Se ele dificulta a identificação de criminosos, não é ele que gera o crime. Ao contrário, o anonimato protege os fracos e a vida íntima dos homens de bem, a maioria da nossa sociedade. Não quero que ninguém fora do meu circulo de amizade saiba o que coleciono, qual supermercado ou livraria virtual freqüento, quais sites são de minha preferência e qual horário denunciei ao Procom uma empresa de banda larga que faz operação casada com uma empresa de software, impedindo que os usuários tenham liberdade de escolha. Estes fatos não dizem respeito ao coletivo social, não interferem na organização da sociedade e, sendo assim, não precisam ter sua autoria divulgada. Um dos mais antigos direitos de cidadania é o direito à privacidade e à intimidade.

Uma democracia não vive sem o anonimato. Ele, por exemplo, permite que o cidadão, sem grande poder político ou econômico, possa expor sua opinião sem pressões e ameaças. O anonimato é a base da liberdade de voto e de consciência. Ele permite que a pessoa mais frágil vote contra os tiranos, poderosos, vingadores e criminosos. O anonimato na comunicação mediada por computadores assegura a liberdade cotidiana, diminui as possíveis perseguições e afasta os perigos da vigilância constante. Entretanto, como é de conhecimento geral, os provedores de acesso têm meios para recuperar todos os registros de navegação (os logs) dos seus usuários, mas os provedores somente devem realizar tal intrusão na vida das pessoas mediante ordem judicial. Como a liberdade não dá em árvores, como resultado de uma construção social, ela precisará ser defendida, principalmente no ciberespaço. Defender a liberdade, a privacidade e o anonimato é um dos elementos chaves para a construção de uma cidadania digital.

Monday, November 06, 2006

Hackers, Monopólios e Instituições Panópticas: Elementos para uma Teoria da Cidadania Digital

Apresentei o texto abaixo na Intercom, em setembro 2006. Acredito que ele seja útil para a reflexão diante dos ataques que a idéia de liberdade está sofrendo na rede.


Prof. Dr. Sergio Amadeu da Silveira
Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero

RESUMO
A expansão da comunicação mediada por computador por meio de redes transnacionais, baseadas em protocolos e códigos de comunicação, coloca uma série de problemas de grande complexidade para a consolidação da cidadania, tais como, a defesa da privacidade, o direito ao anonimato, a liberdade dos fluxos de conhecimento, a propriedade dos bens simbólicos e a governança da Internet. Questões sobre a capacidade das tecnologias da informação e comunicação reconfigurar as práticas sociais e engendrar processos de mudança no cenário mundial, incorporando novos direitos, são apontadas neste artigo que delineia o confronto entre as perspectivas de uma cultura hacker, de um lado, e o vigilantismo panóptico e rentável de Estados e monopólios de algoritmos, de outro.

Palavras-Chave:comunicação e tecnologia, Internet, cidadania digital, cibercultura, comunicação mediada por computador.


Introdução: Velhos Direitos, Novas Violações e a Ambigüidade das Redes.

A comunicação mediada por computador e a digitalização intensa de grande parte dos conteúdos de expressão – textos, sons ou imagens -- ampliaram as possibilidades das grandes organizações – Estados, companhias transnacionais e redes criminosas – de observar e rastrear o comportamento e o cotidiano dos cidadãos. A comprovação empírica dessa afirmação pode ser encontrada exatamente nos Estados Unidos, um dos países com grande tradição na defesa da privacidade e, ao mesmo tempo, a nação com o maior número de computadores e internautas. Em dezembro de 2005, o jornal The New York Times divulgou que presidente George W. Bush teria autorizado o NSA (National Secutity Agency) a realizar milhares de escutas telefônicas e scaneamento de e-mails sem a prévia autorização judicial.3 O governo alega que a Lei USA Patriot, aprovada no fim de 2001, permite a espionagem de pessoas sem consulta ao Judiciário, pois isto seria indispensável para um combate ágil e eficaz ao terrorismo.

No mês de maio de 2006, o site de buscas Google, recusou-se a entregar ao Departamento de Justiça norte-americano uma lista contendo palavras e sites pesquisados por todos usuários durante uma determinada semana. O governo já vinha utilizando as bibliotecas para captar informações sobre o que as pessoas consultam.4 A Lei USA Patriot permite tais ações de rastreamento. É notável que antes mesmo dos ataques de 11 de setembro, o FBI (polícia federal norte-americana) já scaneava e-mails que transitavam pelos backbones (redes de alta velocidade) e seus roteadores instalados nos Estados Unidos. Esta prática de vigilância ocorria a partir de um sistema chamado Carnivore que permitia ler todos os e-mails e copiar aqueles que continham determinadas frases e palavras-chaves. É importante ressaltar que mesmo denunciado no parlamento por organizações da sociedade civil, tais como a EFF (Eletronic Frontier Foundation) e EPIC (Eletronic Privacy Information Center), o Carnivore violou e-mails de cidadãos americanos e também de estrangeiros. Todas as mensagens “supeitas” que tiveram o território norte-americano como rota de passagem foram violadas.

Talvez muito mais do que os Estados, algumas poucas corporações estão buscando legitimar a alteração no imaginário social sobre o espaço da privacidade em um mundo inseguro. Empresas que controlam algoritmos embarcados nos códigos de programação computacional, amplamente empregados como intermediários da comunicação contemporânea, tais como sistemas operacionais, estão realizando intrusões em computadores pessoais sem que nenhuma reação revoltosa seja noticiada. A tecnologia DRM (Digital Rights Management) usada para tentar impedir o uso não autorizado, denominado “pirata”, de softwares, games, vídeos, filmes e músicas, está permitindo que em nome da defesa do copyright seja destruído o direito a intimidade e a privacidade.

Além disso, o caráter transnacional da rede de comunicação mediada por computador, coloca o problema sobre a definição das regras básicas de operação da rede que são definidas por protocolos de comunicação, padrões e pela estrutura dos nomes de domínios. Emerge a questão da governança da Internet que envolve a disputa entre cinco grandes interesses não necessariamente contrapostos: dos comitês técnicos que definiram até agora os protocolos da Internet; dos Estados nacionais; das corporações de Tecnologia de Informação; da sociedade civil mundial e das várias comunidades hacker; e o interesse do Estado norte-americano. Uma série de decisões aparentemente técnicas que afetarão a privacidade e o anonimato dos internautas estão sendo debatidas e poderão ser adotadas sem que os cidadãos do planeta, que utilizam a Internet, tenham a mínima possibilidade de debatê-las ou mesmo de recusá-las. Se for definido que o protocolo de comunicação básico entre as milhares de redes deverá ter como o padrão o fim do anonimato na comunicação, isto afetará completamente a forma como conhecemos a Internet hoje.

Estes exemplos reforçam a necessidade de observarmos mais atentamente a relação entre comunicação, tecnologia e mudança social. Também indicam que a comunicação mediada por computador, por seu caráter transnacional, afeta cidadania e exige a reconfiguração dos direitos para uma vida coletiva no ciberespaço. Sem dúvida, a rede mundial de computadores tem servido às forças democratizantes para compartilhar não somente mensagens e bens simbólicos, mas também conhecimentos tecnológicos que estão gerando as possibilidades distributivas de riqueza e poder extremamente promissoras. Exatamente nesse contexto, que um conjunto de mega-corporações atuam para manter e ampliar em uma sociedade informacional os poderes que detinham no capitalismo industrial. Para tanto, precisam conter a hiper-comunicação pública e torná-la comunicação privadamente controlada, substituindo a idéia de uma cultura livre pela cultura da submissão ou do licenciamento.


Algumas Considerações Sobre a Noção de Cidadania.


John Perry Barlow, um dos fundadores da Eletronic Frontier Foundation, escreveu a A declaration of the Independence of Cyberspace, em fevereiro de 1996, como reação ao Ato de Decência nas Comunicações, uma lei que visava o controle de conteúdos na Internet, proposta pela administração do presidente norte-americano Bill Clinton. Barlow foi enfático: “Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone.” Apesar do seu apelo, dez anos depois é preciso constatar que ele não foi atendido, nem pelos Estados nacionais, nem pelas mega corporações. Isto porque o ciberespaço não existe descolado do mundo material. A Internet depende da infra-estrutura lógica e física que está sobre o comando de pessoas e empresas que habitam os territórios controlados pelos velhos gigantes estatais, os Leviatãs.

Sem dúvida alguma, a Internet representa uma mudança de paradigma das comunicações e é vista por uma série de teóricos como a maior expressão da chamada revolução das tecnologias da informação (CASTELLS). A supremacia da comunicação baseada na difusão, a partir de um ponto, está sendo substituída pela comunicação em rede. A Internet assegura a possibilidade de qualquer cidadão disputar a atenção da rede para seus sites, blogs ou mensagens. A net é um meio técnico com características intrínsecas que permitem a democratização da criação de conteúdos. Considerando ainda que a Internet é uma rede transnacional baseada no fluxo de dados, que transitam sobre um mesmo conjunto de protocolos e regras de codificação e decodificação de códigos, fica evidente que os Estados nacionais não teriam o controle total do fluxo de conteúdos, como ocorre no caso da TV e do rádio. O fluxo da Internet pode originar-se fora do território nacional. A lei nacional tem enorme dificuldade de ser executada se um provedor de conteúdo que hospeda um site de pedofilia encontrar-se hospedado em um país distante.

Todavia, existem possibilidades de controle de conteúdos e de aplicações que são realizadas por meio da própria tecnologia. É preciso relativizar a idéia de que os Estados não possuem formas de bloquear e até mesmo controlar determinados fluxos da Internet. O governo autoritário da China filtra conteúdos e impede o acesso a determinados sites porque controla os dois backbones por onde transitam todos os dados que entram e saem do país. Desconhecer estas possibilidades de controle significa abandonar a jornada da humanidade na luta pela legitimação do direito à livre comunicação como um dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. É olhar somente para as promessas democratizantes da comunicação mediada por computador e esquecer de sua face panóptica. É desconsiderar a gravidade do fato do Google organizar buscas censuradas para poder ter acesso ao mercado chinês, prática já realizada pelo Yahoo e MSN.

Donna Haraway, em sua brilhante reflexão feminista, qualificou o momento em que vivemos como a “transição das velhas e confortáveis dominações hierárquicas para as novas e assutadoras redes (...) de 'informática de dominação'”. (HARAWAY, p.65) As redes possuem uma linguagem comum entre as máquinas e estas são intermediários indispensáveis para as linguagens naturais humanas, em um ambiente de comunicação via máquinas de processar dados. O jurista Lawrence Lessig já havia alertado, no final dos anos 1990, que no ciberespaço o código tem o mesmo papel de uma legislação. (LESSIG). Exatamente pelos intermediários tecnológicos que Estados autoritários e neo-autoritários (falo dos Estados Unidos), bem como gigantescas empresas imperiais do capitalismo informacional tentam controlar os cidadãos.

Weissberg denunciou a contradição existente entre o desejo de uma comunicação cada vez mais transparente e desintermediada, a partir do dinamismo e do potencial interativo da Internet, e a realidade de sua operação. Por isso, afirmou que “o objetivo de supressão dos intermediários se transforma, conforme seu próprio movimento, em criação de uma nova camada de mecanismos mediadores que automatizam a mediação.”(p.123) Mas como fica a noção de cidadão em um mundo cada vez mais transnacionalizado e com a comunicação mediada por padrões e códigos (softwares) que são apresentados por instâncias definidas como técnicas e distantes dos mecanismos de controle democrático?

Aqui é necessário enfrentar pelo menos duas questões: primeiro, a da evolução da cidadania; segundo, a questão do papel da comunicação e da tecnologia para a mudança ou permanência das relações sociais.

Segundo vários autores, podemos definir “cidadania” como o direito a ter direitos. T. H. Marshall observando a evolução do conceito na Inglaterra, defendeu existir direitos de primeira e segunda geração. Para Marshall, primeiro teriam surgido os direitos civis e depois os políticos (séculos XVIII e XIX). Uma segunda geração de direitos surgiram no século XX e conformariam os chamados direitos sociais. Apesar de acusada de etnocêntrica e linear, a proposição de Marshall passou a ser referência para a observação da mutabilidade histórica da cidadania. Nesse sentido, alguns teóricos observaram o surgimento na segunda metade do século XX dos direitos de terceira geração, ou seja, direitos de grupos, de minorias e etnias, direitos difusos que ganham força em todo o mundo. Questões como o direito ao meio ambiente, o feminismo e a defesa do consumidor, são incorporados em várias legislações e discursos políticos. (LISZT)

A comunicação transnacional mediada por computador coloca a necessidade de reivindicar novos direitos? Como reivindicar novos direitos em um ambiente transnacional? Mas não seria um exagero exigir deliberação democrática e debate público sobre as funcionalidades de sistemas, códigos e protocolos considerados técnicos pelas indústrias de TI e pelo senso comum?

Vamos verificar um caso concreto que interferirá no cotidiano de todas as pessoas do planeta que utilizam e cada vez mais dependem da rede mundial de computadores. O protocolo de comunicação da Internet chamado IP (Internet Protocol) permite o endereçamento de dados entre todas as redes que a compõem. A versão deste protocolo que permitiu a expansão veloz da rede por todo o planeta é denominada de IPv4 e está sendo substituída por uma nova versão, o IPv6. Entre os vários motivos de criar uma nova versão estão as razões de segurança. O IPv6 permite que os cabeçalhos dos pacotes de dados sejam assinados digitalmente por chaves criptográficas. Estas chaves servem para identificar o autor das mensagens. Pois bem, se for definido que o padrão de comunicação entre redes será a identificação criptográfica de todos os pacotes, então a Internet terá suprimido o anonimato na comunicação. Suponha que boa parte ou a maioria dos cidadãos dos vaŕios países do mundo sejam contra o fim do anonimato na Internet. Como influenciarão esta decisão? A quem recorrer? Qual será o fórum de decisão? Ou continuaremos a acreditar que estas decisões são meramente técnicas?

Guarinello coloca-nos um ponto extremamente relevante: “Há, certamente, na história, comunidades sem cidadania, mas só há cidadania efetiva no seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e para a construção de projetos para o futuro.”(p.46) O problema é que a Internet por ser transnacional não se enquadra facilmente no terreno onde a cidadania tem conseguido avanços, ou seja, nos espaços nacionais.

Entretanto, Liszt Vieira aponta que “recentes concepções mais democráticas pretendem dissociar completamente a cidadania da nacionalidade. (...) Por esta concepção, seria possível pertencer a uma comunidade política e ter participação independente da questão de nacionalidade.”(p.32) Mark Poster avança e questiona: “podem os novos meios de comunicação promover a construção de novas formas políticas não amarradas a poderes territoriais e históricos? Quais são as características dos novos meios de comunicação que promovem novas relações políticas e novos sujeitos políticos?”(p.328)

Talvez uma boa linha de investigação tenha sido lançada por Benedict Anderson quando afirmou que a nação é uma comunidade imaginada. Os meios de comunicação foram fundamentais para a constituição da idéia moderna de nação. A partir dessa perspectiva, Gustavo Lins Ribeiro defende que do mesmo modo que “Benedict Anderson mostrou, retrospectivamente, a importância do capitalismo literário para a criação de uma comunidade imaginada que evoluiria para tornar-se uma nação. Sugiro que o capitalismo eletrônico-informático é o ambiente necessário para o desenvolvimento de uma transnação.” (p.469)

A emergência de uma “comunidade transnacionalmente imaginada”, nos dizeres de Ribeiro, exige o aparecimento de lealdades superiores a dos Estados Nacionais, forjadas a partir do ciberespaço. Nesse contexto, Mark Poster vê a possibilidade de surgimento de uma espécie de cidadão planetário: “o net-cidadão pode ser a figura formativa num novo tipo de relação política, que partilha a lealdade à nação com a lealdade à Internet e aos espaços políticos planetários que ela inaugura.”(p.329)


Comunicação, Tecnologia e o Mito da Neutralidade.


O problema da cidadania, em um cenário de globalização e transnacionalidade, coloca-nos diante da necessidade de enfrentarmos a discussão do papel das comunicações e das tecnologias da informação nos processos de mudança e permanência das relações sociais. Dominique Wolton escreveu:

“Se uma tecnologia da comunicação desempenha o papel essencial, é porque simboliza ou catalisa, uma ruptura radical da ordem cultural ocorrendo simultaneamente na sociedade. Não foi a imprensa que, por si, transformou a Europa, mas sim a ligação entre esta e o profundo movimento que subverteu o poder da Igreja Católica.” (WOLTON, 2003, p.32)

Para Wolton, as tecnologias de informação e os meios de comunicação não criam revoluções, ao contrário, são utilizados pelos processos revolucionários ou mudancistas. Sem dúvida, não foi a revolução industrial que criou o capitalismo, mas sem dúvida alguma, o domínio da tecnologia da máquina assegurou a primazia sobre o processo de apropriação da riqueza produzida e, este domínio econômico, gerou mais poder sobre a sociedade. Os capitalistas não poderiam impor suas relações de produção se não incorporassem a forma mais produtiva e avançada de geração de bens materiais.

Wolton vê nas promessas em torno das tecnologias da informação as mesmas ilusões que geraram prognósticos otimistas para os impactos da TV, do Rádio, do satélite, do cabo, no convívio humano. O teórico francês não percebeu que a TV e todas as formas do paradigma de difusão não têm nenhuma relação com as tecnologias da informação. Estas são mais do que formas de comunicação intensa e múltipla, são também tecnologias da inteligência (LÉVY) que ampliam as possibilidades de transformar informações em conhecimento. São tecnologias que reivindicam um comportamento interativo e se baseiam na proliferação da cópia. Permitem fundir sons a imagens e estas a textos, sendo multidirecionais e capazes de armazenar bilhões de dígitos na mesma máquina receptora e transmissora de mensagens.

Ao afirmar que “a técnica não é suficiente para mudar a comunicação na sociedade”, Wolton pode estar desconsiderando dois importantes elementos: um histórico e outro teórico. Primeiro, a tecnologia da informação nasceu no âmbito do cálculo e do processamento de dados. Somente depois que o computador tornou-se uma ferramenta de comunicação. De um projeto militar no cenário da Guerra Fria, o paradigma da computação em rede surgiu e foi reconfigurado inúmeras vezes por cientistas, hackers e pensadores da contracultura californiana (CASTELLS). Assim surgiu a Internet real, tal como a conhecemos hoje. É inegável que sua expansão está mudando a face das comunicações no planeta. E a comunicação em rede é completamente distinta do broadcasting.

Segundo, talvez a insistência de Wolton em afirmar que a tecnologia não muda a sociedade guarde a concepção de que as tecnologias são socialmente neutras. Técnicas quando inventadas sempre guardam decisões de quem as criou. Muitas delas podem ser reconfiguradas, outras têm o uso ambíguo, como a Internet, mas nunca são criadas sem objetivos, de modo neutro. É exatamente esta a questão que aqui discuto. Decisões sobre a arquitetura das redes e seus protocolos estão sendo tomadas por engenheiros, mas têm grande impacto social e podem limitar ou ampliar a liberdade da comunicação entre as pessoas. São decisões de grande impacto público, portanto, adquirem relevância política, mesmo que tenham sido tomadas por comitês técnicos.

Considerar que determinadas tecnologias guardam potenciais revolucionários, não significa também assumir a proposta de McLuhan. Mattelart criticou a supremacia que McLuhan dava ao meio. Sem dúvida, o meio condiciona, mas dificilmente poderá determinar os conteúdos. São visíveis os exageros de McLuhan quando advogou que “o grande abalo que rompeu o corpo da comunicação e a desmembrou teve lugar na Idade Média. Se a Igreja perdeu posição nessa época, se ela aí perdeu sua unidade mística, foi por causa da tecnologia.”(MATTELART, p.103) Por outro lado, é necessário reconhecer que a invenção de Gutenberg viabilizava a proposta de doutrinadores da Reforma que queriam romper com os intermediários entre o homem e Deus, entre a portador da fé e os escritos sagrados. A impressão de tipos móveis “baniu o estilo de vida comum em favor de uma comunidade massiva onde cada indivíduo pode se tornar um leitor e onde a leitura se torna uma experiência privada.” (idem, p.103)

Em outro texto mais recente, Wolton parece reconhecer a magnitude e a complexidade da comunicação em rede e aponta um problema que indica a necessidade da deliberação pública sobre os caminhos da comunicação mediada por computador, principalmente, a Internet: “É no que o tema da sociedade da informação é perverso: ele homogeneiza tudo e faz desaparecer o homem por de trás dos fluxos de informação. Numa economia do signo, tudo é possível. Cabe então ao homem inventar seus próprios limites.”(WOLTON, 2004, p.155)


Conclusão: Concentração de Poder e Cultura Hacker


Carlos Afonso, um dos pioneiros da Internet no Brasil, ao comentar o debate sobre a governança da Internet na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, ocorrida em duas fases, Genebra, em 2003, e Túnis, em 2005, afirmou:

“Os equívocos de alguns participantes do debate global vão desde acreditar que o tráfego de conteúdo passa pelo sistema de servidores-raiz até pensar que as funções de governança da Internet como um todo deveriam estar sob a alçada da UIT (União Internacional das Telecomunicações). A ICANN também costuma ser apresentada como uma organização global, o que é verdade apenas numa pequena parte e, em termos legais, não o é de forma alguma. A ICANN está sujeita às leis federais dos Estados Unidos e às leis do estado da Califórnia, e o seu poder de governança da Internet está limitado por vários contratos e por um Memorando de Entendimento (ou MoU, na sigla em inglês) envolvendo o governo dos EUA, a ICANN e a principal operadora do sistema global de nomes de domínio, uma empresa privada chamada Verisign.” (AFONSO, p.11)

O que mais chama a atenção na crítica de Carlos Afonso não é a ignorância de alguns participantes, mas o grande poder do governo norte-americano sobre um dos órgãos técnicos que definem regras da comunicação em rede. Por outro lado, este poder não está apenas no contexto da governança da Internet, pois uma sociedade em rede ou informacional exige um conjunto de intermediários e de decisões técnicas de enorme impacto sócio-planetário.

A concentração de poder comunicacional na sociedade da informação poderá ser muito maior do que a ocorrida com a mídia de massas na sociedade industrial. No ano de 2002, mais de 90% dos computadores pessoais do mundo utilizavam o sistema operacional de uma única empresa norte-americana, a Microsoft. O sistema operacional é o principal programa de uma máquina de processar informações. Ele define como a máquina deve agir, como deve alocar a memória, que tipos de programas podem ou não podem ser instalados nela, entre outras funções. “Por dominar a linguagem básica dos computadores, esta empresa também passou a dominar o mercado de navegadores web (browser), uma vez que passou a vender o browser junto com seu sistema operacional, desbancando todos os outros existentes.”(SILVEIRA, p.157)

Mark Poster alerta-nos que a saída para a democratização da sociedade informacional está na construção de novas estruturas políticas fora do Estado-nação em colaboração com as máquinas.”(p. 322) Ou seja, é na formação de um movimento de opinião pública planetário, transnacional, no ciberespaço com consequências em todos os territórios, pois para Poster não há como criar processos decisórios mundiais. Poster acredita que “a nova 'comunidade' não será uma réplica de uma ágora, mas será mediada por máquinas de informação. Portanto, o exigido é uma doutrina dos direitos da interface homem/máquina.”(p.322)

Para construirmos a idéia de novos direitos de caráter planetário, será fundamental observarmos a cultura hacker que esteve presente desde o nascimento e em toda a expansão da comunicação baseada nas redes informacionais. A Internet evoluiu aberta, vencendo tentativas de apropriação privada de seus elementos principais, exatamente pela forte influência dos hackers em seus processos vitais. A cultura hacker também está escrevendo uma das mais contundentes críticas a opacidade dos códigos e ao bloqueio do fluxo de conhecimento tecnológico na sociedade da informação. Dela nasceram movimentos como software livre e fenômenos como a maior enciclopédia do mundo, a wikipedia.

Ao estudar a cultura hacker, o filósofo finlandês Pekka Himanen escreveu:

“A ética de trabalho dos hackers consiste em combinar paixão com liberdade, e foi essa a parte da ética dos hackers cuja influência foi sentida com maior intensidade.” (...) “um terceiro e crucial aspecto da ética dos hackers é a atitude dos hackers em relação às redes, ou seja, é a sua ética da rede, que é definida pelos valores da atividade e do cuidar. Atividade, nesse contexto, envolve a completa liberdade de expressão em ação, privacidade para proteger a criação de um estilo de vida individual, e desprezo pela passividade frente à procura pela paixão individual. Cuidar significa aqui a preocupação com o próximo como um fim em si mesmo e um desejo de libertar a sociedade virtual da mentalidade da sobrevivência que tão facilmente resulta de sua lógica.” (p.126)

Os hackers do movimento de software livre estão enfrentando as companhias que buscam monopolizar no planeta o controle dos intermediários da comunicação (softwares, códigos e protocolos da comunicação em rede). Estas companhias alegam que seus direitos de propriedade estão acima de todos os demais direitos, inclusive da liberdade de conhecer, do uso justo de uma obra protegida pelo copyright, do direito à privacidade, à segurança e ao anonimato. Enfim, estamos em uma novo terreno. Dele emanam a reivindicação de novos direitos, direitos de comunicação, de liberdade de expressão e da possibilidade democrática de tomar decisões em uma sociedade em rede, virtual ou ciberespacial. O debate mal começou.


BIBLIOGRAFIA


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SAFERNET: www.safernet.org.br