Sunday, May 06, 2007

PORQUE O OLPC XO PODE MUDAR O ENSINO.

A matéria abaixo saiu na última edição da Revista A Rede . Ela deixa claro o que está envolvido na guerra promovida pelo grupo montador de computadores (com componentes quase todos importados) chamado Positivo em aliança com a micro$oft (que quer manter-se monopólio a qualquer custo e para isso precisa que as crianças estejam vinculadas às interfaces confusas de seus produtos) contra o XO.


Educação sem camisa-de-força

13 de abril de 2007
Verônica Couto

A professora Léa Fagundes, coordenadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC), da UFRGS, conta por que acredita no laptop XO para revolucionar os processos de ensino no país. Ela também está pilotando os testes com o equipamento numa escola pública de Porto Alegre.


"Essa máquina XO é tudo o que a gente sonhou, queria, e nunca conseguiu”. Quem diz é a professora Léa Fagundes, psicóloga e pedagoga, referindo-se ao laptop da ONG One Laptop per Child (OLPC). Ela coordena o Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e também o teste pedagógico que está sendo feito na Escola Estadual Luciana de Abreu, em Porto Alegre, com o XO. Foi homenageada pela Unesco, no ano passado, na categoria Informação e Comunicação, em reconhecimento ao seu método de aprendizagem para escolas públicas, baseado no uso de novas tecnologias digitais. Na mesma ocasião, a Unesco premiou, pos mortem, o educador Paulo Freire, na categoria Educação.

O equipamento da OLPC, desenvolvido no Massachusetts Institute of Technology (MTI), na opinião da professora, representa “uma revolução” no processo de aprendizado. “É um computador novo, o primeiro criado para ser usado na educação”, destaca. Ou seja, não é mais a adaptação forçada, para as escolas, de um equipamento feito para escritórios — como os PCs que rodam os aplicativos do Microsoft Office (escritório, em inglês) —, e que não teriam, segundo ela, promovido nenhuma melhoria na educação. O XO resulta, explica Léa, dos estudos de Jean Piaget e Seymour Papert, sobre as formas como as pessoas (especialmente, as crianças) percebem o mundo e aprendem, e de Marvin Minsky, precursor da inteligência artificial.

Dos 400 XOs previstos para a escola de Porto Alegre, contudo, chegaram apenas cem, em janeiro, dos quais somente 50 haviam sido liberados na alfandêga, até o final de março. A coordenadora do LEC lamenta que ainda haja, no governo e na indústria, muita oposição ao projeto da OLPC. Isso acontece, argumenta Léa, porque a Intel, fabricante do equipamento concorrente, o ClassMate, estaria oferecendo um pacote completo ao país — capacitação de professores, conteúdos curriculares, logística de transporte, tudo. “O problema é que o ClassMate é um PC, não muda nada no sistema de ensino”, critica ela.

O LEC também está trabalhando em parceria com a Sociedade do Software Livre, e com programadores da UFRGS, para desenvolver atividades pedagógicas para o XO. E capacitando os professores e alunos (da sétima série) da escola selecionada para o teste, que poderão, no futuro, formar um grupo de multiplicadores desse conhecimento para novos usuários do laptop, em cursos a distância. “Se o governo brasileiro comprar 1 milhão de equipamentos, teremos que treinar 40 mil professores da rede pública em menos de um ano”, calcula.


ARede • O que se pode esperar do XO do ponto de vista pedagógico? Qual a diferença entre ele e o ClassMate e o Mobilis, outros computadores que o governo avalia para uso na educação?
Léa • A diferença começa pela natureza do equipamento. Esse XO resultou de 30 anos de pesquisa do Media Lab, o laboratório de mídias do MIT, que estuda o desenvolvimento da inteligência, os processo de aprendizado e as tecnologias.

Quando criamos o Laboratório de Psicologia Cognitiva (há 30 anos), no Instituto de Psicologia, estudávamos os problemas de aprendizado. Isso foi sempre meu desafio, saber por que as crianças pobres, das escolas públicas, não aprendiam. Das crianças com sete anos, 50% eram reprovadas na 1ª série. E, daí em diante, sempre aquele atraso, aquela baixa autoestima, os professores desanimados. E a gente explicava que era “a pobreza”, “a ignorância dos pais”, “porque são pretos, filhos de escravos, de índios”. Não é nada disso. O educador precisa saber como a criança aprende e como a inteligência se desenvolve.


ARede • Como o XO responde a essa demanda?
Léa • Esse XO é tudo o que a gente sonhou, queria e nunca conseguiu. O PC nunca foi feito para a Educação, mas para a guerra, a indústria, o comércio. Tanto que um aplicativo que todo mundo usa, é o Office, que não tem nada a ver com educação, serve para escritório – office. A gente tenta é adaptar para a educação.

Mas, repara: quando a gente tinha teatro, não tinha cinema. Quando surgiu o cinema, como foram os primeiros filmes? Teatro filmado. O homem não consegue mudar tão rápido. Não há um salto. Você tem um sistema de significação, e fica preso nele. O seu raciocínio, a sua imaginação, fica tudo preso ao condicionamento da sua experiência de vida.

Então, o que fizeram os professores quando surgiu o PC? Colocaram o software aplicativo, e reproduziram no micro o material do livro didático. No primeiro projeto brasileiro do Ministério da Educação (MEC), junto com a Secretaria de Informática, foram criados cinco centros – a UFPE, UFMG, UFRJ, Unicamp, e nós (UFRGS). Todo mundo pensou em criar conteúdo para ensinar química, física, biologia. O pessoal do Rio levou cinco anos desenvolvendo um pacote completo, com todo o conteúdo do ensino básico, para o MSX (computador). Quando terminaram, o computador tinha saído de linha, o pacote não rodava. Tiveram que refazer tudo.

Aqui na UFRGS, nossa linha foi outra. Por que usar um recurso novo para reproduzir o tradicional? Na escola onde estamos testando o XO, há salas onde os alunos estão enfileirados, caderno e livro abertos. A professora passa as questões no quadro, eles copiam no caderno, e buscam respostas no livro. E nós estamos no século 21. Antigamente, se o aluno errava, tomava palmatória. Agora, não dá palmatória, dá nota baixa, reprova. Então, passa-se o século e a educação não muda. Porque é muito penoso ter uma formação, ser condicionado por ela, e, de repente, mudar tudo. Mas, mesmo lentamente, o sistema resiste. No mundo todo, a reação é a mesma. Se a escola vai mal, os alunos vão mal, ela perde recursos, então não se arrisca a inovar.


ARede • O plano do MEC não quer vincular metas a recursos?
É. Mas quem precisa de recursos é quem está mal. Essa concepção é mundial. Está tudo errado. É preciso aprender a se desenvolver, a pensar, refletir, ser criativo. Quando a criança é bem desenvolvida, bem atendida pela família, tem ambiente para aprender, viajar, livros para ler, mãe que escuta, que conversa, a criança aprende. Mesmo que o ensino seja moderado, ela aprende, porque está se desenvolvendo.


ARede • Como o XO muda essa escola?
Léa • Primeiro, ao permitir que o aluno não use o PC. Isso é importante. O ClassMate é bonitinho, igualzinho ao PC, com Word, planilha, Power Point, navegador, é familiar, confortável. O XO não é um PC. Eles inventaram um novo computador, feito só para educação. É a máquina das crianças.

O XO é a máquina das crianças, porque são elas que programam. E o XO cria um ambiente natural de expressão da comunicação. Tem a câmera fotográfica, os fones, as crianças se comunicam conversando na tela. Conectam-se pela internet wireless. Além disso, tem uma coisa maravilhosa, que é a rede Mesh. Quando eu uso a internet nos PCs tradicionais, a comunicação e a interação ficam forçadas. Não é um ambiente para três, quatro pessoas colaborarem para gerar um produto.


ARede • Os outros computadores em teste no governo têm uma solução pedagógica?
Léa • Eles não têm teoria nem práticas pedagógicas diferentes. São para o ensino tradicional. Isso é que me dói. Tu vai fazer uma despesa danada, e não mudar nada. O governo está encantado com o ClassMate. Custa US$ 400, mas a Intel, que fez parceria com o Bradesco e a Editora Abril, paga a formação do professor, o transporte, dá a estrutura de rede para a escola. São módulos padronizados no mundo inteiro. E a Intel me diz: ‘somos uma multinacional, damos o mesmo conteúdo aqui, que damos em outros países’. Ou seja, não muda nada. Eu perguntei à coordenadora do programa do ClassMate quem dará esses cursos, ela respondeu que ela era mesma. A formação dela? Administração de Empresas. O outro, MBA, Marketing. Ou seja, a Intel vai formar professor para usar a máquina deles.

Para fabricar, a Intel procurou a Positivo. Vou dar um exemplo do que se trata. Fui a uma escola em São José dos Campos (SP) com 20 máquinas, crianças de 7ª série, todas sentadas, com a professora e um técnico ajudando. É uma aula de geografia, do capítulo do livro didático, mas todo o seu conteúdo está na internet. Pedi para baixar do site. Conteúdo de quem? Da Positivo. Era o homem pré-colombiano, mas a imagem não tinha nada de pré-colombiano, era elegante, magro, alto. E com roupinhas, para o aluno vestí-lo. É isso, roupinhas de boneca para vestir o homem pré-colombiano?

A Positivo tem 700 mil páginas na internet, que cobrem conteúdos de todas as matérias, de todas as séries. Está tudo pronto. O professor acha uma maravilha. Por que? Ele não precisa preparar a aula, não precisa planejar. Quando termina a aula, já tem teste pronto, e o programa diz o que as crianças erraram. Mas qual é a função do professor, então? O professor não precisa pensar?


ARede • No XO, qual a função do professor? Como ele vai trabalhar as atividades para atender ao currículo e as provas de avaliação do MEC?
A nossa educação é uma camisa-de-força. Não aprendemos a pensar e não temos consciência disso. Por exemplo, eu sou uma analfabeta musical. Fiz formação de professores, mestrado, doutorado, dois cursos de graduação — Psicologia e Pedagogia. E não consigo ouvir uma melodia e escrevê-la. Então, no que essa escola foi boa? Eu sou um ser limitado. Por que não posso aprender música? Não sei fazer uma acrobacia, uma coreografia, trabalho com imagem não existe. Adorava esporte. E por que não desenvolvi coordenação motora para fazer um esporte que me realizasse? Essa escola não desenvolve as pessoas. Ela é competitiva, mas não oferece o que os estudantes precisam agora. Na introdução à informática, ensina a usar o computador. Planilha, tabelas, gráficos. Fazer o que com isso?

O professor quer dar os conteúdos como sempre deu, do jeito que estão no livro. Mas, quando têm o XO à sua frente, são desafiados. E quando dão o XO às crianças, é emocionante.


ARede • Como está sendo a capacitação dos professores para o XO?
Léa • Aqui em Porto Alegre, tive que escolher uma escola com 400 alunos, o número de laptops que teríamos. Encontrei uma escola com 350 alunos e 50 professores, da 1ª à 9ª. Fizemos um seminário de dois dias. Apresentamos a pesquisa do LEC, como vamos fazer funcionar o modelo do XO, as propostas pedagógicas, o que já existe de produção de conhecimento científico. Trabalhamos com os dez XOs que tínhamos, em rodízio.

Prometeram nos mandar mais cem XOs depois do carnaval. Chegaram no Brasil, mas a alfandêga não liberou. Nem o MEC. Decidimos formar monitores com alunos da 7ª à 8ª séries que gostam de computadores. Eles vieram fazer a formação com os professores, para ajudar quando chegassem os computadores.

Então resolvemos fazer uma Formação Continuada em Serviço. Os professores trabalham de manhã, de tarde, de noite, e ganham pouco. Não têm tempo para sair e fazer cursos. Mas têm duas horas por semana para planejar. Essa é a hora teórica do curso; e as aulas, as horas práticas. Estamos documentando tudo. Se o Brasil comprar mais um milhão de XOs, teremos que formar 40 mil professores, em alguns meses. E quem vai fazer isso? Essas 40 professoras, nós e os meninos, a distância.


ARede • E como estão sendo as aulas com o XO? A rede Mesh já funciona?
Léa • Só chegaram à escola 50, dos cem, no dia 20 de março. Temos dez unidades com os programadores na universidade, e 50 na escola, dos 400. Só duas turmas de 4ª série, da tarde, estão usando. São 43 alunos e professores, mais os 12 monitores — 55 XOs. Estamos esperando os outros 50. Quando chegaram os primeiros, não tínhamos dinheiro nem para instalar a rede wireless. Colocamos do nosso bolso, parcelamos os equipamentos. Tivemos que recarregar todos os XO, porque chegaram com uma quantidade enorme de novas atividades. São 400 programadores produzindo no mundo todo.

Ainda não instalamos a rede Mesh. Foi preciso instalar uma rede local, para colocar os access points (pontos de acesso) — a escola não tinha acesso à internet, nem computador (só na secretaria). Os meninos tiraram uma peça de um micro, de outro, e montaram um servidor para garantir um sinal melhor. A internet via wireless, até ontem, usava o servidor daqui, da universidade. Agora, vão pendurar o XO na rede, para tentar colocar a rede Mesh.


ARede • Os alunos levam o laptop para a casa?
A primeira reunião com os pais tinha quase 400 pessoas, entre pais, mães, tios, avós. Os professores nunca tinham visto uma reunião dessas. Expliquei o projeto, e disse que eles teriam que assinar um contrato, porque o computador é da escola, e o filho vai poder levar para casa, para a família toda usar. Para fazer a inclusão na comunidade. É o que chamamos de escola expandida. O professor, em vez de chamar os pais para se queixar dos alunos, vai procurar os pais para participar dos trabalhos. Por exemplo: temos aqui esse muro da escola — a escola está abandonada, sem pintura, sem nada, pobre —, então os meninos podem fazer um projetinho de como revestí-lo, com reboco, cimento. Alguns dos pais trabalham em construção civil, são pedreiros. O menino leva o laptop, fotografa o pai, entrevista – como é que faz a argamassa, onde é que se compra, como é que se prepara a matéria. É o projeto deles. Os pais ensinam, eles trazem, colocam no nosso ambiente, e começam a produzir. Vão na loja, fazem orçamento. Aí os pais gostaram. É o conhecimento da família entrando na escola.

Perguntei aos pais: vocês acham que os alunos podem levar o computador para casa? Uma mãe disse que não, o menino toma dois ônibus, os ônibus são assaltados, achava perigoso. Mas outra perguntou: e no feriado? Aí pensei, ótimo. Quando for fim de semana ou feriado,vocês vêm aqui, acompanham seus fihos e levam o laptop, e trazem de volta. Gostaram. Um pai pediu a palavra e disse que todos precisavam correr riscos, ensinar os filhos e protegê-los. E bateram palmas. Mas as professoras ficaram com medo, querem se adaptar mais, e nem todos os pais assinaram o compromisso.


ARede • Se acontecer alguma coisa, os pais vão ter que pagar pela máquina?
Léa • Isso não adianta. O prejuízo real é do menino, que fica sem o XO. Mas também alertei a eles: é preciso compartilhar, ensinar, chamar os amigos em casa para usar.


ARede • Quais são as atividades que estão no XO?
Léa • Primeiro, e acho fantástico, é que ele não tem arquivos. Aí criticam: o XO não tem memória, o ClassMate tem. Pois não é mesmo para armazenar arquivo. Ele tem journal (de jornal, diário), onde se registram todas as atividades. Há um recurso de colocar tags e fazer banco de dados. Então, se tirei medidas de comprimento, fiz cálculo de superfíce — coloca a tag matemática. Aí fiz música, escrevi, vai pondo as tags, e depois acessa essas atividades por técnicas usadas, conceitos trabalhados, problemas resolvidos. A criança, com o professor, decide a classificação. Ela constrói um banco de dados sobre a própria atividade. Qualquer outro que entrar na rede Mesh vai no banco de dados e escolhe o que consultar.


ARede • Assim, as crianças desenvolvem alguma habilidade em programação?
Léa • Sim, porque programar é que faz aprender. A criança tem que fazer antecipações, retroações e tirar conclusões. Já estava na proposta da linguagem Logo. Agora, temos a linguagem Squeak. Foi criada em software aberto, orientada a objetos. Tu programas objetos, e faz atividades com os objetos, usando o recurso Etoys. Por exemplo, fazer um carrinho. O menino junta a roda, os pneus, a capota, o motorzinho. Desenha uma paisagem. E o carrinho tem que descer uma lomba. E quando manda o carro girar, engatar e descer, os comandos todos programadinhos, ele vai e cai lá embaixo, respinga e faz barulho – tchum! E O Squeak roda no XO.

LINKS INDICADOS

www.lec.ufrgs.br/index.php/Projeto_UCA_-_Um_Computador_por_Aluno
www.papert.org/ — Página do professor Seymour Papert
www.squeakland.org/ — Sobre o Squeak, software de autoria de mídias, de código aberto e voltado para a compartilhamento (em inglês).