
Ontem, escrevi neste blog que o parecer técnico que subsidiou a decisão do TSE, que restringe a propaganda na Internet, era kafkiano. Como não expliquei bem os motivos desta afirmação, considero que uma passagem do livro
O Processo é extremamente esclarecedora do absurdo similar que estaremos vivendo caso o TSE mantenha sua resolução.
Vejam:
"-- Aqui estão os meus documentos de identidade.
-- Que importância eles têm para nós? -- bradou então o guarda grande. -- O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer acabar logo com o seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários subalternos que mal conhecem um documento de identidade e que não têm outra coisa a ver com o seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia, sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a despeito disso somos capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar -- a nós, guardas. Esta é a lei. Onde haveria erro?
-- Essa lei eu não conheço -- disse K.
-- Tanto pior para o senhor -- disse o guarda.
-- Ela só existe nas suas cabeças -- disse K, querendo de maneira se infiltrar nos pensamentos dos guardas, revertê-los em seu favor ou neles se instalar.
Mas o guarda, num tom de rejeição, disse apenas:
-- O senhor irá senti-la.
Franz se intrometeu e disse:
-- Veja, Willian, ele admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente."
(KAFKA, Franz. O processo. Tradução: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp 15-16)
Um parecer técnico da assessoria do TSE, divulgado pela imprensa, trouxe a absurda conclusão:
"o que não é previsto [na legislação eleitoral] é proibido". Pois é exatemente o contrário, o que a lei não proibe é permitido. Imagine se prevalecer esta idéia da assessoria do TSE? Estaremos vivendo na sociedade do
Minority Report. Você poderá ser culpado de algo que a lei não proibe. É o princípio Kafkiano aplicado. Ou seja, viveremos a situação em que os executores da lei -- que existe apenas na cabeça das autoridades, já que o que não está proibido também não está autorizado -- poderão dizer aos candidatos e seus apoiadores que "as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro."...