Thursday, April 03, 2008

SOBRE KAFKA, TSE, INTERNET E "O PROCESSO"...



Ontem, escrevi neste blog que o parecer técnico que subsidiou a decisão do TSE, que restringe a propaganda na Internet, era kafkiano. Como não expliquei bem os motivos desta afirmação, considero que uma passagem do livro O Processo é extremamente esclarecedora do absurdo similar que estaremos vivendo caso o TSE mantenha sua resolução.
Vejam:

"-- Aqui estão os meus documentos de identidade.
-- Que importância eles têm para nós? -- bradou então o guarda grande. -- O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer, afinal? Quer acabar logo com o seu longo e maldito processo discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem de detenção? Somos funcionários subalternos que mal conhecem um documento de identidade e que não têm outra coisa a ver com o seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por dia, sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a despeito disso somos capazes de perceber que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar -- a nós, guardas. Esta é a lei. Onde haveria erro?
-- Essa lei eu não conheço -- disse K.
-- Tanto pior para o senhor -- disse o guarda.
-- Ela só existe nas suas cabeças -- disse K, querendo de maneira se infiltrar nos pensamentos dos guardas, revertê-los em seu favor ou neles se instalar.
Mas o guarda, num tom de rejeição, disse apenas:
-- O senhor irá senti-la.
Franz se intrometeu e disse:
-- Veja, Willian, ele admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente."

(KAFKA, Franz. O processo. Tradução: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp 15-16)


Um parecer técnico da assessoria do TSE, divulgado pela imprensa, trouxe a absurda conclusão: "o que não é previsto [na legislação eleitoral] é proibido". Pois é exatemente o contrário, o que a lei não proibe é permitido. Imagine se prevalecer esta idéia da assessoria do TSE? Estaremos vivendo na sociedade do Minority Report. Você poderá ser culpado de algo que a lei não proibe. É o princípio Kafkiano aplicado. Ou seja, viveremos a situação em que os executores da lei -- que existe apenas na cabeça das autoridades, já que o que não está proibido também não está autorizado -- poderão dizer aos candidatos e seus apoiadores que "as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem uma detenção como esta, se informam com muita precisão sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui não há erro."...

8 comments:

Morar Bem RJ said...

Pois é Sérgio! Agora tenho um amigo que precisa saber se como pré-candidato a vereador no Rio de Janeiro, deve apagar ou tirar do ar seu blog pessoal que mantém antes mesmo da decisão de participar das eleições de 2008. Me pediu que investigasse a questão e ainda não sei o que dizer pra ele... o que vc acha???

Luiz Parreira (Luizparreira.blogspot.com)

Ana Amelia said...

Pingo nos "is"
Prezado Sergio, a notícia é realmente alarmante como vc. noticiou. Só que não corresponde a verdade dos fatos. Um veículo de comunicação noticia erradamente e o resto o segue .... Isso sim é alarmante! Não existe nenhuma decisão do TSE proibindo propaganda na internet.Estamos diante de 2 situações distintas e que não se comunicam entre si. Uma coisa é a consulta eleitoral e outra a regulamentação em vigor.
Consulta eleitoral: A consulta foi apresentada em outubro/07; o então relator a enviou para a assessoria especial, órgão técnico do Tribunal, que se manifestou sobre as perguntas formuladas pelo Dep. Zé Fernando. As conclusões do parecer, assim como a consulta estão aguardando a manifestação do novo relator. A matéria ainda não foi colocada em pauta para julgamento. Parecer de órgão técnico não é decisão do TSE, é mera sugestão. Seu posicionamento não tem força de lei e não se aplica a essas eleições (e talvez a nenhuma outra).
Eleições de 2008: nenhuma norma impede a propaganda por meios eletrônicos, que pode ser feita atendendo aos comandos legais expressos. O candidato pode manter página na internet, sob qualquer terminação, veiculando sua propaganda em “página destinada exclusivamente à campanha eleitoral”. (Nem se fala em obrigatoriedade do uso do pontobr). Logo, o candidato pode sim criar sua página específica para campanha em seu site pessoal,em lista de discussão, no orkut ou no YouTube. Manifestação pessoal de apoio feita por terceiros não são proibidas e encontram-se acobertadas pelas garantias constitucionais de livre manifestação do pensamento. O candidato pode responder pela propaganda irregular realizada por terceiro, DESDE QUE comprovado seu prévio conhecimento, garantido o devido processo legal e o direito à ampla defesa.
Até 6 de julho estaremos diante da ocorrência de propaganda antecipada, expressamente proibida, sob qualquer modalidade.
Encaminhamos a consulta com o Dep. exatamente para que não houvesse mais incertezas quanto a postura de legalidade dos candidatos na propaganda realizada na rede. Um dia ela será julgada e esperamos que os ministros compreendam o lícito emprego dos recursos digitais. E com certeza será necessária uma grande mobilização da comunidade Acho que vivemos atualmente um paradoxo, pois o Tribunal eleitoral mais informatizado do mundo, ainda não enfrenta a propaganda digital.
Peço desculpas pelo tamanho do post, mas não consegui falar em menos espaço. Disponibilizo meus estudos sobre esse tema no blog que criei para acompanhar o andamento da consulta propagandaeleitoral.blog.terra.com.br/

samadeu said...

Ana Amelia
Muito obrigado pelo esclarecimento. Todavia, gostaria de dizer que se o parecer ainda pode ser derrotado é preciso também derrotar a Resolução 22.718 que no seu artigo 18 diz:
"A propaganda eleitoral na Internet somente será permitida na página do candidato destinada exclusivamente à campanha eleitoral."

Não cabe ao TSE legislar e ele está legislando. Uma resolução não pode definir o uso da rede mundial de computadores. Além disso, com esta resolução o TSE estaria proibindo a campanha em blogs, fotologs, youtube, perfis no twitter, no orkut (onde é possível encontrar mais de 50% dos internautas brasileiros), no Facebook, no MySpace e em outros sites de relacionamento? Tudo aquilo que a Internet permite de incentivo ao relacionamento estaria vetado?

Qual o objetivo do TSE em tratar a Internet como uma mídia tradicional?

Unknown said...

Paz e bem!

Ana Amélia!

Vamos rezar para que os juízes do TSE sejam iluminados e percebam a bobagem que estaria à caminho.

Mas isto só ocorrerá se fizermos pressão e mostrarmos o tamanho do problema que estão criando pra si mesmos e pra democracia do Brasil.

Ana Amelia said...

Bem, infelizmente para as eleições de 2008 nada a fazer ... Mas devemos pressionar com força para que haja possibilidade de mudança de mentalidade. Nossos argumentos precisam ser demonstrados ao TSE, sob pena de, em não sabendo o quê fazer, sigam esse parecer talibã por falta de conhecimento da mídia digital. Pode-se enviar mensagens ao Presid. do TSE e criar um forum específico sobre esse tema, onde todos postariam suas observações. Somente assim o TSE passaria a ter acesso as argumentações. (existe uma petição eletrônica assinada por todos que desejaram ontra a aprovação do PL sobre crimes de informática). Somente com a pressão social pode-se obter êxito. Devemos nos arregimentar, e é preciso um líder. Quem se habilita ?
[]s

Unknown said...

Paz e bem!

Ana Amélia:

1 É fundamental que pressionemos e argumentemos ao TSE.

2 Porém, acho que só vão mudar a decisão quando os juízes de lá perceberem a quantidade de processos que terão de ser abertos e a complexidade do problema:

2.1 Vão ter de abrir processos por causa das centenas e até milhares de apoiadores que vão produzir e disseminar materiais de publicidade eleitoral (banners, comunidades no Orkut, e-mails etc.) para os candidatos qua apóiam.

2.2 O que farão contra um eventual cidadão português que, querendo gerar confusão, criar blogs para candidatos às eleições no Brasil?

O que não deixa de ser argumento técnico.

Anonymous said...

GOstei da analogia, apesar de adorar kafka, não li ainda o processo.

Virá a recife?

Estarei no encontro PE de Software Livre.

Abraços

Anonymous said...

Esqueci de assinar o comment dai de cima:

Isaac Filho